Não resisto em colocar aqui uma citação que descaradamente retiro do Beati Monoculi in Terra Caecorum (que no meu Latim enferrujado resulta em: “Feliz quem tem um olho em terra de cegos“).
A citação, que versa sobre sobre o Concílio Vaticano II, é do famoso teólogo Henri de Lubac, sendo ele considerado um dos grandes teólogos do mesmo Concílio. Aqui vai:
O drama do Vaticano II consiste no facto de ter sido monopolizado pelos intelectuais em vez de ser gerido por santos, como foi o Concílio de Trento. Sobretudo, foi monopolizado por certos teólogos, cujo teologar partia do preconceito de actualizar a fé às exigências do mundo e emancipá-la de uma pressuposta condição de inferioridade em relação à civilização moderna. O lugar da teologia deixa de ser a comunidade cristã, quer dizer, a Igreja, e transforma-se em interpretação de cada um. Neste sentido, o pós Concílio representou a vitoria do protestantismo no interior do catolicismo.
“II vero Concilio e chi l ‘ha tradito”, in II Sabato, 12-18 de julho de 1980.
Para mim a primeira frase já é suficientemente contundente. Deixo ao leitor (caso exista algum) a tarefa de retirar as devidas ilações.
Sim, há algum… Quanto mais não seja, tu próprio 😉
Li com um pouco mais de atenção o teu post.
Na tua maneira de ver, matemáticamente:
CVII=Teólogos=Asneira?
Santos≠Teólogos?
Repara que não é apenas a minha maneira de ver, é a de um dos grandes teólogos do Vaticano II.
De resto, as tuas inequações têm de ser lidas no contexto e de acordo com a citação, assim sendo a primeira tem de ser corrigida:
CVII=Intelectuais=Asneira, (e não CVII=Teólogos=Asneira) sendo que esses intelectuais representam apenas “certos teólogos”, e não toda a classe de teólogos.
E a segunda não é sequer suportada pelo texto. Quando muito seria “Santos≠Intelectuais”, o que também muito dificilmente se consegue inferir a partir do texto. Temos bastos exemplos que contrariam essa tese e de certeza que, conhecedor como H. de Lubac é da história da Igreja e dos grandes intelectuais e teólogos que foram santos, ele não iria defender tal asserção.
Aquilo para o qual H. de Lubac nos quer chamar a atenção é o facto de não serem santos os que monopolizaram o Concílio, quedavam-se apenas pela intelectualidade. Faltou-lhes o mais importante.
Mas isso não é um bocadinho subjectivo? A definição de santidade ou não poderá ser sentenciada pela interpretação de um homem? Por mais conhecedor da Igreja e da sua história que ele seja?
Bem, a ver se entendo o teu comentário.
Repara que eu refiro a história da Igreja para refutar a noção de que Santos≠Intelectuais.
De resto, é certo que podes questionar a autoridade do autor do texto para averiguar da santidade dos outros, contudo algum motivo deverá ter para dizer o que disse, e os frutos do Concílio parecem atribuir-lhe razão.
Repara, com isto não se quer dizer que aqueles pobres coitados já se perderam ou estão condenados. Devemos confiar sempre na misericórdia de Deus, na eficácia das suas graças e acreditar na possibilidade de resposta dos homens aos seus apelos.
Penso que o que realmente se quis dizer com este texto é que no Concílio se deu mais importância ao compromisso com a intelectualidade do que à fidelidade à santidade.
Não será que há quem pense o contrário?
Há, com certeza que há. E infelizmente são bem mais numerosos, para não dizer esmagadoramente mais numerosos.
O que vale é que mesmo assim têm aparecido análises lúcidas e, graças a Deus, está a aumentar o número daqueles que começa a ter um olhar mais crítico sobre o Concílio Vaticano II.
Mas esta temática é um mundo demasiado vasto para que to consiga explicar apenas num comentário. Recomendo que pesquises sobre o assunto e encontrarás muito que ler. Podes começar por aqui: http://www.montfort.org.br/
Ou ainda, não será essa a interpretação de quem não segue a mesma corrente teológica instalada na Igreja actual? Não podemos interpretar a avaliação de Lubac como “ressentimento” ou simples e básico desdém? Somos homens imperfeitos e facilmente nos podemos deixar levar pelas nossas emoções. Eu sinto que é fácil um homem enganar-se, ver as coisas distorcidas. A maravilha da vida comunitária é mesmo o enriquecimento com o ponto de vista alheio. Mesmo quando somos cristãos praticantes de oração e comunhão com Deus, as tentações são grandes e o orgulho algo que está sempre presente.
No final de contas, se a comunidade universal que é a Igreja ruma numa certa direcção, por mais estranha que ela nos possa ser, não a deveremos apoiar e lutar por ela? Defendê-la confiando na sua orientação divina?
Dizes: “Ou ainda, não será essa a interpretação de quem não segue a mesma corrente teológica instalada na Igreja actual?”
Essa tua afirmação concentra o cerne de todo o problema: o modernismo. Não existem correntes teológicas na Igreja! Há uma só teologia que é a doutrina da Igreja Católica. E quanto a isso não deve haver concessões.
A teologia não pode ir ao sabor do sentimentos e das emoções. Não se pode afirmar hoje que Deus não pode ser trino porque acordei mal-disposto (isto é uma hipérbole, obviamente) ou amanhã digo que tanto faz ser protestante ou católico só porque acordo com vontade de agradar a todos.
Isso da comunidade universal ser a Igreja… calma lá. A Igreja é o Corpo Místico de Cristo e portanto só faz parte da Igreja quem está em comunhão com o Corpo Místico de Cristo, ou seja, aceita e segue fielmente os documentos e orientações canónicas e dogmáticas do magistério da Igreja, isto é, todos os Concílios dogmáticos (não o Vaticano II que foi apenas pastoral) e tudo o que foi dito pelos papas ex cathedra definindo uma doutrina de fé ou costumes.
Com esta frase eliminei, infelizmente, a maior parte dos que se dizem católicos hoje em dia.
Dizes: “se […] a Igreja ruma numa certa direcção, por mais estranha que ela nos possa ser, não a deveremos apoiar e lutar por ela? Defendê-la confiando na sua orientação divina?”
A Igreja não pode rumar durante milénios numa direcção e depois tomar outro rumo. Quem pensa que sim por certo achará natural que daqui a uns anos volte a mudar de rumo. Se assim fosse estaríamos completamente desorientados. Contudo isso não acontece. Como dizes e bem, a Igreja goza de orientação divina, e Deus é só um, assim como uma só é a Verdade, por isso devemos lutar para que ela mantenha o único rumo que deve ter e que foi o que teve desde o início.
Mas a Igreja não é apenas fruto directo de Deus mas sim de Deus e dos homens que Ele criou e orienta. Ora os homens são seres fortemente condicionados pelo seu meio. Sempre assim foi, temo que sempre assim será. O “meio” envolve hábitos, costumes, filosofias, posturas, preceitos e preconceitos. Tudo isso é humano… e dinâmico. A vivência da Igreja está inapelavelmente impregnada desse dinamismo. Parece-me irrealista achar que a Igreja deverá ser imune a isso e bastante errado achar que a atitude perante isso seja “cristalizar” a situação humana de um certo tempo e tomá-la como única para a eternidade. Dever-se-ia investir esforços no aprofundamento daquilo que seja verdadeiramente essencial à vida de fé e comunhão com Deus e criar fundamentos suficientemente genéricos para serem válidos em qualquer hora, dia ou ano da existência humana. Em cima deles poder-se-á então construir formas de viver a Igreja nos diferentes espaços e tempos em que o Homem existe, existiu e existirá.
A camada central é, no meu ver, essencialmente espiritual e a outra camada, mais superficial e “contemporânea” com os fiéis, será resultado da reflexão da Igreja no dia-a-dia da sua vida.
Achas impossível ou simplesmente desorientado viver sob esse “modelo” de Igreja?
Dizes: “Mas a Igreja não é apenas fruto directo de Deus mas sim de Deus e dos homens que Ele criou e orienta.”
A Igreja é sobretudo obra do Espírito Santo. Por muito que os homens quisessem nunca conseguiriam levar por diante semelhante obra sem que esta fosse orientada e sustentada por Deus.
O papel principal na Igreja pertence a Deus, e não aos homens.
Dizes: “A vivência da Igreja está inapelavelmente impregnada desse dinamismo. Parece-me irrealista achar que a Igreja deverá ser imune a isso e bastante errado achar que a atitude perante isso seja “cristalizar” a situação humana de um certo tempo e tomá-la como única para a eternidade.”
Dizes bem, a vivência da Igreja. Mas o que está aqui em causa não é apenas a vivência da Igreja, mas a sua doutrina e moral. Essas, meu caro, são fixas e permanentes, porque fundadas sobre A Verdade que é só uma: Cristo. E Deus não muda! A Verdade não muda! Logo a verdadeira doutrina e a verdadeira moral não mudam.
Dizes: “Dever-se-ia investir esforços no aprofundamento daquilo que seja verdadeiramente essencial à vida de fé e comunhão com Deus e criar fundamentos suficientemente genéricos para serem válidos em qualquer hora, dia ou ano da existência humana.”
Mas meu caro, aquilo que é verdadeiramente essencial à vida de fé já está definido pelos vários concílios e documentos dogmáticos da Santa Igreja. O que é preciso é ser fiel a esses ensinamentos. De resto não vejo que fundamentos genéricos possam ter lugar na nossa fé, ainda por cima coisas que possam ser azuis hoje e vermelhos amanhã.
A nossa fé não é um conjunto de coisas abstractas que nós podemos moldar a nosso belo prazer só porque hoje pensamos de um modo diferente de ontem e amanhã ainda outro pensamento terá lugar.
A nossa fé está fundada em bases imutáveis porque verdadeiras independentemente do dia, da hora ou de qualquer outro circunstancialismo mutável. Caso contrário não teria autoridade nenhuma para se pronunciar sobre o que quer que fosse.
Dizes: “Em cima deles poder-se-á então construir formas de viver a Igreja nos diferentes espaços e tempos em que o Homem existe, existiu e existirá.”
E porque razão se há-de construir formas diferentes de viver a Igreja se o Deus é só um e a Verdade é só uma? Porque razão se dá tanto valor às formas diferentes de viver a Igreja? Será realmente a mesma Igreja se a mudarmos como nos apetece? Porque razão não se dá pelo menos o mesmo valor à Verdade? Porque razão se aceita tão pacificamente que as coisas mudem sem sequer pensar no que se faz, sem se preocupar com o erro?
Dizes: “A camada central é, no meu ver, essencialmente espiritual e a outra camada, mais superficial e “contemporânea” com os fiéis, será resultado da reflexão da Igreja no dia-a-dia da sua vida.”
Mais uma vez, tudo o que é importante para ti é essencialmente espiritual. Cuidado com o dualismo.
Então e o que é que a Igreja deve reflectir no dia-a-dia da sua vida?
Imagina: “Hoje vamos reflectir sobre se Jesus é de facto Deus ou não, e daqui a um ano voltamos a reflectir sobre o assunto, pois pode ser que cheguemos a outra conclusão”. “Amanhã iremos debater sobre se vale a pena que existam sacerdotes… claro que depois iremos debater o tema de novo, pois pode ser que mudemos de opinião…”. Ou ainda: “Eh pá, hoje dá jeito aceitar que se aborte, amanhã logo veremos se continuamos a defender o mesmo”.
Que Igreja seria esta? Eu digo-te, seria a Igreja do homens, que ia ao sabor do vento, onde Deus não tem lugar pois os homens não querem saber de coisas que permanecem e são imutáveis. São antiquadas, dizem… Tudo é dinamismo, não há lugar para o permanente, logo, não há lugar para Deus.
Perguntas: “Achas impossível ou simplesmente desorientado viver sob esse “modelo” de Igreja?”
Impossível não é… basta olhar para a nossa situação actual. Agora desorientado, sem dúvida… mas é que é mesmo evidente.